Guardar

By 14 de setembro de 2014dezembro 18th, 2014Gavetas

Guardar é o ser das gavetas. Não se guarda nada melhor, mais inteiramente, do que numa gaveta. É um gesto completo. A bolsa, o bolso, o envelope, a carteira, até mesmo o armazém, o almoxarifado e os galpões não se equiparam à gaveta em sua perfeição de abrigo.

Guardar coisas é também guardar-se. Quem guarda, ama guardar. Guardar é um exercício de claustrofilia. Guardar alguma coisa numa gaveta é o gesto de fazer com que algo se retire, momentânea ou definitivamente, da vida. Simboliza ruptura. A gaveta apresenta uma fantasia de retiro, um desejo de ruptura, de afastamento, de separação do mundo, de anacorese. Todo pertence de gaveta é um anacoreta. Todo retiro é um ato de ruptura. Roland Barthes testemunha isso que ele chama de “inclinação ao retiro”, presente nas almas mais sensíveis. Assim, engavetamos alguém, uma memória, um objeto de valor afetivo alegre ou doloroso, um plano, um sonho, um malogro, todo um passado.

Para Bachelard, junto aos armários e cofres, está a gaveta como a “casa das coisas”. Sua expressão transforma as gavetas imediatamente num lar. Pois as coisas também experimentam, como nós, a necessidade da casa, necessidade de estarmos abrigados, contidos, de pertencermos a um topos, um locus, um lugar — que é a necessidade do lar. Do ponto de vista afetivo mais profundo, não existe vida sem lar. Tudo o que está cheio de alma sabe disso. Assim, Bachelard nos dá uma pista importante: na gaveta, a função de guardar confunde-se e complica-se com a função de habitar. Habitar é estar guardado, estar guardado é habitar. Só guarda bem, só conhece a poética e a psicologia da gaveta, quem sabe habitar.

Gustavo Barcellos, em “A vertigem das gavetas”