A Alma Consumida do Cangaço

By 2 de setembro de 2014novembro 11th, 2023A Alma do Consumo

Trecho da apresentação:

O cangaço foi um acontecimento de muita complexidade e representa um marco histórico na cultura do país. Para entendê-lo, é necessária uma compreensão da alma brasileira, no cultivo de histórias e imagens que retratam o seu cotidiano, no retomar dos fios. Dessa forma, é possível sentir o cangaço como um fenômeno que se tornou rico em tradições e inventividades, que despertou tanto a atenção do homem pobre — provocando sua identificação através de cumplicidades e participação nos feitos do grupo, quanto do rico, das classes mais abastadas, políticos e politiqueiros, no uso oportuno dos seus serviços.

Almas consumidas pelos sentimentos desenfreados e convulsos, amargados pelas contendas no interior dos próprios protagonistas que, com paixão e morte conviviam. Em meio às dores e alegrias; entre a vida e a morte: perseguições, emboscadas, traições, saques, assassinatos, generosidade e doações.

As mulheres gostavam de adentrar no cangaço porque essa escolha era uma forma de libertação do jugo paterno, além da vantagem de viver ao lado de homens viris, guerreiros, ousados, capazes de confrontos e se opor aos temidos pais. Todavia, fato surpreendente é que o cangaço sobreviveu quase duzentos anos sem as mulheres e foi destruído, logo após a entrada delas no grupo. Nos inícios, os bandos eram formados apenas por homens. As mulheres entraram após a chegada de Maria Bonita. Esta de um tudo sabia: parceiragem firme e confiável, ativa nas decisões e no cumprimento das ordens, no cuidado com o bando, no amor por Lampião.

Além de herói e bandido, Lampião era amante do amor, da beleza, como se absolutamente fossem necessários ao seu próprio caráter. Sedução, encantamento, beleza e uma inegável criatividade dele irradiavam. Através dos objetos elaborados para o bando, emerge a necessidade insofismável do convívio com o belo, uma exuberância bruta, natural. O cangaço se investe de erotismo e atrai pessoas apaixonadas pela vida e pela morte, e do bom senso se afastam e da liberdade se tornam amantes e com ela se comprometem, casam e vidas errantes cultivam.

Angela Teixeira

Trecho da discussão:

Hermenegildo Anjos: Acho que tem uma conotação heróica muito forte, muito acentuada. Concordo com você que o mito do herói não explica Lampião, nem você pode entender Lampião apenas através do mito do herói, pois ele envolve outras instâncias, como você está dizendo. Mas a acentuação heróica no perfil de sua atuação é bastante marcada por causa das características que ele compartilha com o mito do herói. Como a gente sabe, a questão da conquista, existia uma necessidade de conquistar, o que é que eles queriam conquistar? Eles queriam conquistar ouro, eles tinham uma busca por ouro e por luxo muito grande, poder, status, existia uma preocupação de Lampião com status, com poder. Ele era um saqueador, que é uma das características mais elementares do herói. O herói é aquele que chega, conquista e saqueia. Ele também é guiado por uma espécie de idealismo, ele também tem um idealismo, de liberdade. Então, não é apenas um perfil de conquistador, mas vejo bem essa acentuação heróica.

Aurea Roitman: Sinto que Lampião, como todo o bando, constituía uma polifonia de sons, uma pluralidade de aspectos… eu não sei quem eles eram, mas certamente eram alguém que ousava se contrapor ao poder, e se mesclava neles, se embaralhava, mas era alguém que ousou não se conformar, alguém que teve a coragem de falar e de se perder também. Agora, se isso é herói ou não, isso não me importa muito, esse nome, eles eram alguém que ousou se interpor em tempos difíceis, em tempos rudes.

Angela Teixeira: Todo mundo devia obediência a ele.

Aurea Roitman: Sinto que foram movidos pelo inconformismo, a não aceitação de uma ordem, e tinham uma coisa de eros, uma coisa colorida, de um afeto misturado com ódio, porque é humano. Eu conheci a filha de Lampião e Maria Bonita, conversei muito com ela. Era uma jovem recatada, simples, eu diria que era uma freira, falava baixo, se vestia simplesmente, como se não tivesse nada a ver com isso. Ela é viva. Já sua filha era uma Maria Bonita, era uma Dadá, uma menina, eu a conheci, que falava, conversava, era uma pessoa que parece que recupera isso. Eu tinha uma amiga, que faleceu, Maria Cristina Machado, que escreveu sobre o cangaço e a guerrilha como tese de doutorado. Percorreu todo sertão, inclusive viu que mesmo após a anistia, que houve uma anistia para o cangaço, muitos cangaceiros não sabiam, e ainda estavam refugiados, e ela trouxe essas pessoas para São Paulo quando sua tese já estava terminada, no dia da apresentação. Eles ficaram aqui muitos dias, e eu muitas vezes fui conversar com Dadá. Ficava ali encantada com aquilo que ela contava e estupefata com a filha do Lampião que tinha esse perfil. E ela me falava disso mesmo, era uma mulher muito doce e muito forte ao mesmo tempo, eu ficava muito emocionada com isso. Como uma mulher que pode ser tão dura, pode ser também um doce. Acho que aí aparecia uma coisa nova e tão verdadeira, que sempre me encantou. Falei com ela algumas vezes durante algumas horas e sempre me encantou.