Sujeitos Rejeitos: A Poética dos Escombros

By 9 de julho de 2016novembro 11th, 2023Lixo Ordinário

Ivany Carneiro Silva

 

“Lixo Ordinário”, esse tema do nosso seminário, me mobilizou muito, pois desde abril do ano passado tenho trabalhado num CAPS (CAPSad GM-Faculdade de Medicina Terreiro de Jesus) para usuários de álcool e drogas no coração do Centro Histórico de Salvador, no Pelourinho, local de exuberâncias em história, beleza, arquitetura, arte, pessoas, resíduos e lixo. Lá se encontra a presença de uma fatia da sociedade considerada resíduo, considerada lixo, que vive a margem, pessoas que vivem e sobrevivem à custa de um estado alterado de consciência, vivendo no limite da humanidade possível. Usuários de drogas, alcoolistas, mendigos, vagabundos e moradores de rua são banidos pelas famílias e comunidades, são indivíduos rejeitados, ignorados, perseguidos, estigmatizados, drogados, largados, viciados, jogados nas ruas e na sarjeta. Carregam consigo as mais tristes e dramáticas histórias, humor e alegria também e surpreendentemente tem uma produção poética e artística invejável, além de afeto solidário e cuidadoso entre eles, que se denominam irmãos.

É desafiador o trabalho com essa população no ofício de fazer alma, um verdadeiro trabalho alquímico, onde predomina nigredo, apesar das intercambiáveis fases alquímicas se fazerem presentes. Venho experimentando um trabalho, que batizei de Oficina Movimento, onde a linguagem é lúdica, com elementos de dança e teatro, num convite a improvisação, expressão singular através da voz e do movimento.

Neste lugar da alma exubera poesia e essa experiência me inspirou uma breve reflexão que gostaria de compartilhar:

 

De onde falam esses sujeitos rejeitos que muitas vezes queremos calar, adestrar linguagens, civilizar ou exilar do nosso universo psíquico? Quem são esses transeuntes dos lixos e escombros de nossa psique? Que fazem, onde vivem? Para onde nos conduzem? Quantas Estamiras, Bispos do Rosário, Mulher de Roxo, mendigos, sacizeiros e loucos habitam em nós? Nos decompõe, constroem, reciclam, reutilizam, depurando humores, decantando sintomas, produzindo imagens, sim parindo imagens, das mais variadas poéticas, oras pútridas, plásticas, assombrosas, inflamadas, ameaçadoras, singelas e delicadas, escatológicas, desumanas. 

Esse entulho, tão múltiplo, polimorfo, resíduo vivo, repleto de afetos, nos convida ao ofício do fazer alma. Esse território misterioso e invisível, quase impenetrável, envolto a chorume e decomposição é matéria prima para o processo alquímico, por vezes ficamos paralisados e presos no cárcere da nigredo, noutras somos garimpeiros na Serra Pelada da Alma onde podemos encontrar relíquias e preciosidades.

Na labuta em transitar pelos escombros nos misturamos com ele, nos afetamos, reconhecendo nosso lixo genuíno, nos deparando com nossa psicopatia. 

E nós, o que fazemos com esse universo de resíduo da psique em decomposição?      

A metáfora dos catadores de lixo pode nos inspirar em como reutilizar, reciclar, ressignificar o lixo do invisível mundo dos sonhos? Nos torna garimpeiros de relíquias nos monturos? Podemos tecer alma a partir desses restos: lixo, luxo, choro, chorume, num farto arado de imagens? Reciclar, reutilizar, reanimar, anima, alma.

 

 

 

Poesias dos usuários do CAPSad:

 

“Do papelão faço meu colchão,

Do céu faço meu cobertor.”

 

 

“Por que eu vou chorar?

Porque a noite sempre traz as trevas.”

 

 

“Eu não sou poético,

Não sou ninguém,

Sou ser humano,

Prá mim não é nada.”

 

 

“A miséria do mundo que abunda,

Por vezes faz-me sentir corcundo

Como se carregasse um fardo

Que não é meu, essa miséria é intelectual,

Nada sobrenatural, nada metafísico.

Apenas miséria educacional que não é,

Nunca foi e nunca será para todos.”

 

 

“…Quanto mais falo sobre a verdade inteira,

Um abismo maior nos separa,

Porque você não tem um nome,

Eu tenho,

Você é um rosto na multidão,

Eu não,

Eu sou o centro das atenções,

Mas a mentira da aparência do que eu sou,

Com a mentira da aparência do que você e´…”

 

 

“Eu sou apenas um ser humano rejeitado pela sociedade,

Que traz a cura, a amargura e a felicidade.”

 

 

“Nós vivemos o mundo ou o mundo vive a gente?”

 

 

“A cura, ódio e a lembrança,

Você traz a criança,

Naquela gestancia.

Amor é um drama, que não te descansa.”

 

“Eu me deposito onde o mundo não insisto e resisto.

Eu me deposito dentro e fora do meu grito,

E das banalidades mundanas do mundo econômico sacana,

Que não respeita os ritos.

Eu me deposito no creio que anseio,

Porque a selvageria do capital,

Faz-me um anormal que não compras o amor,

Que chora a dor do alheio.

Aí quando me canso de chorar o meu brado calado,

Eu me deposito a meu lado,

E vou jogando fora de mim as responsabilidades do estado,

Dum estado assim: meu, seu, de todos nós.

Estado louco e sem voz.”

 

 

“Muitas coisas boas que voam no caminho,

Terra que nos traz, a felicidade desses rios.

Muitas coisas vem para nos afetar,

Outras vem prá nos amar,

Nossa alegria respira nesse ar,

Mas nossa cor, transpira no polo do mar.”

 

 

“Minha cama é um jornal,

Meu travesseiro é uma pedra,

A noite eu não durmo,

De dia eu ando cansado,

As estrelas no meu caminho,

Sempre estou andando sozinho.”