Trecho da apresentação:
Na velhice, as imagens se tornam mais divertidas. A longa doença, o casamento errado, todos os dardos e flechas da ofensa perdem seu fogo e esquecem seu objetivo. Será uma insinuação sutil de que a alma está se desfazendo dos pesos que vinha carregando, preparando-se para alçar voo com mais facilidade?
—James Hillman, A força do caráter e a poética de uma vida longa
Percebo o poder de mobilização dessas emoções uma vez que elas trazem nos contos da infância e juventude as alegrias, as raivas, as tristezas, os amores e os medos que perduram no envelhecimento. A memória apaga e a emoção perdura e é ela quem resgata as imagens do passado. A emoção extraída da lembrança, a turbulência passou restam as recordações.
Pergunto-me se a memória recente traz os sentimentos de forma mais enfraquecida, atenuada e camuflada?
James Hillman nos fala que o final da vida é repleto de repetições e retornos a obsessões básicas. (James Hillman, A força do caráter e a poética de uma vida longa. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2001, p. 22.)
Que emoções são essas que acompanham e confirmam a nossa existência? Elas são diferentes no entardecer da vida? Elas se expressam de forma distinta? A irracionalidade das emoções vinculadas ao tempo.
Observo uma necessidade de ter a vida redonda, de anoitecer e amanhecer no mesmo espaço e lugar tal qual uma criança pequena que precisa se desenvolver. Isso é essencial para quem quer permanecer e não partir. Desta vez não para sobreviver como crianças e sim para permanecer juntos aos seus familiares e as recordações que lhe são tão caras. As fotografias, os momentos junto à família, a escola e os amigos. Adiar a morte empurrá-la para frente.
Nota-se uma irritabilidade exacerbada contrastando com uma calma e paciência, principalmente na demência. O envelhecimento ressalta todo o tipo de contradições da natureza humana, a irritabilidade dos idosos faz parte da velhice. E como diz Hillman “os complexos mostram a sua cara saltando para fora, imprevisíveis sorrindo, respondendo mal, felizes, irritados, nervosos como os sete anões”. Os complexos afloram. (James Hillman, A força do caráter e a poética de uma vida longa. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2001, p. 127.) Não temos mais o que esconder, não sabemos esconder. A raiva poderia ser uma forma de libertar-se dos padrões da vida que nos foi imposta. Irritamos porque tudo não sai como queremos, os pés tropeçam, as lágrimas saem por qualquer coisa frente uma gentileza a violência súbita quando somos contrariados as palavras não vem à mente. À medida que envelhecemos o ego controlador nos abandona.
Enfim, memória, repetição e emoções, as histórias têm um sentido num mundo imaginal tratando-se de uma forma de permanecer e empurrar a morte, secando e pegando fogo ou simplesmente soltando faísca. Envelhecer e secar como na alquimia também decanta as emoções e os sentimentos purificando-os?
Hermenegildo Anjos: Interessante como na velhice você experimenta a criança e o velho ao mesmo tempo, na mesma intensidade, como se fosse a mesma coisa. Na velhice, criança e velho são a mesma coisa. E a gente percebe na infância que a criança também é muito velhaca. A criança também é muito teimosa. Muito rabugenta. Como um velho. É com se na infância e na velhice as pontas se encontram. Então, por exemplo, tanto na infância quanto na velhice, as emoções estão muito mais afloradas, você vive muito mais intensamente as emoções. E você vive tanto a emoção da criança quanto a emoção do velho. A rabugice é uma emoção do velho. A intolerância pela mudança, pela modificação da ordem costumeira das coisas, é uma emoção de Saturno/Cronos. É uma emoção saturnina. E você dá passagem a essa emoção saturnina imediatamente. Prontamente. Assim como dá passagem à mais pura infantilidade…
Sheila Miranda
Trecho da discussão:
Gustavo Barcellos: E uma alegria também, uma alegria que você vê em muitos idosos. Há momentos de uma alegria que é muito infantil, também. Muito simples. Por uma coisa às vezes muito simples.
Sheila Miranda: Às vezes, se você disser para uma criança, “olha, eu vou te dar um brinquedo, eu vou comprar isso pra você”, e falar a mesma coisa para o idoso, “vai chegar uma visita”, é a mesma coisa, aquela ansiedade. É a mesma coisa. Muitos parentes evitam dizer o que vai acontecer, uma viagem ou uma visita que vai chegar, porque eles ficam muito ansiosos. Podendo chegar a adoecer, se houver uma viagem para daqui um mês, por exemplo. Isso acontece igualzinho com uma criança.
Rosa Blanco: Uma coisa muito legal que você está falando e que tem a ver com essa coisa da memória, é memória e tempo. Memória e tempo juntos. E, ao mesmo tempo, estão a paciência e a espera e a urgência. E eu estou ouvindo essas palavras desde que o Encontro começou: “tempo de espera, emoção que é urgente.” E você vai falando de um tempo que se antevê muito curto, então eu preciso fazer tudo agora e ao mesmo tempo e no mesmo lugar, esta tranquilidade de saber que um monte de tempo se passou e que a espera é necessária. Eu acho que é isso que você está falando, que a criança e o velho estão juntos. E que aí eu acho que a gente não entende muito bem como é que isso funciona ao mesmo tempo. Talvez nossa dificuldade de trabalhar aqui seja que o nosso ordenado tempo na ‘avenida vida’ bagunça o coreto.
Ivany Carneiro: Achei muito interessante essa questão que você falou de que a gente rotula, ‘é perda de memória, é perda de memória’! E muitas vezes é tristeza, é falta de estímulo, é falta de contato com a emoção. Eu tenho acompanhado de perto a minha própria mãe, com Alzheimer gradativamente há cinco anos, e eu percebo que quando estimulada, e tenho visto isso com outras pessoas, quando estimulada se emociona e que, se gosta de bolero bota um bolero para dançar, declama uma poesia de Castro Alves de duas páginas. Então na verdade, o ócio, a falta, a coisa do velho ficar um pouco poupado demais das emoções, e quase que esperando a morte chegar… higienizado… e aí se fala que é perda da memória, mas é talvez falta de vontade de viver porque aquela vida ali está sem graça, sem emoção.
Sheila Miranda: Jung já dizia que “os jovens têm medo da vida e o velho tem medo da morte”.