Trecho da apresentação:
Quando a alma se manifesta em sua sombria e imperiosa necessidade erótica, sua presença em nossas vidas pode ser freqüentemente experimentada como predatória e vampiresca. A lenda diz que o vampiro deseja viver em nós, ganhar o corpo que julgamos nosso. Dizendo de outro modo, ele deseja nosso amor e nossa morte, nossa profundidade, nossa entrega; algo que não pode ser separado de forma simplista em questões de bem e mal. Mas isso é difícil de perceber assim, pois o livro de histórias no qual estamos enfeitiçadamente presos é de bem e mal, de deus e diabo, de herói e dragão e trata-se de um pesado livro, uma longa história infinitamente recontada como se fosse a única e a verdadeira. Uma ficção que nega-se enquanto tal, tomando para si todos os créditos de realidade. Destacarmo-nos, portanto, desse livro e dessa história, ou seja, percebermo-nos como imagens ficcionais, e, portanto passíveis de encenarmos outras lendas é, no meu modo de ver, a grande trabalheira que figuras como o vampiro tem para conosco enquanto anjo de guarda atuando na escuridão da rua, da nossa casa ou de nossos sonhos. Quando ele consegue algum resultado, então somos, de alguma forma, redimidos do feitiço e podemos finalmente respirar fora da opressiva bíblia de cabeceira.
A religiosidade psicológica provê uma graça, a graça do corpo metafórico, a dádiva de podermos ser re-imaginados e percebidos como fantasia. Dessa forma, também nos tornamos como vampiros ou mortos-vivos. Aproximando-nos lenta, amorosa e reflexivamente de nossos sofrimentos, torna-se possível perceber a alma. Segundo Jung, isso se dá invariavelmente a partir da relação com a sombra. Quando a psique começa a adquirir um sensível corpo em nossas vidas de fugitivos, bandidos ou heróis, o pânico e o assalto do vampiro parecem perder sua literalidade e deixam de ter seu usual caráter de assombração, algo que começa a dar seus primeiros sinais quando nos damos conta de que nós e o vampiro somos feitos da mesma matéria, somos feitos de sonhos.
Hermenegildo Anjos
Trecho da discussão:
Isabel Labriola: Gostei para caramba, porque quando me vi diante da questão “o que dá corpo à psique?”, a primeira ideia que me veio foi exatamente essa, é a nossa sombra, ela que nos pega e que nos vampiriza, nos suga, quer nossa carne, quer nosso sangue e usa o nosso corpo.
Hermenegildo Anjos: Quer a nossa morte. Talvez a coisa mais difícil na prática da psicoterapia, no cultivo da alma, seja amar a sombra, seja, falando metaforicamente, entregar-se ao vampiro.
Gustavo Barcellos: É, mas o que me parece mais interessante no que você trouxe é “a sombra que nos ama”. Esse amor à sombra, na verdade, é uma resposta ao amor da sombra por nós. Todo paralelo que você faz dessa imagem do vampiro, o enlace de morte e eros com uma noção de alma, é aquilo com que a gente trabalha na psicologia arquetípica. A morte do literal, do literalismo.
Hermenegildo Anjos: Estamos falando de relativização de ego. Estamos falando de consciência do outro. Terapia é mortal! E a morte que se dá na terapia, a morte da literalidade, não é uma coisa que aconteça sem dor. A vida literal também tem um prazer, e perder isto tem sabor de morte. É tornar-se um “morto-vivo”, porque você ao mesmo tempo percebe que está vivendo a vida, mas também que a vida é fantasia.
Gustavo Barcellos: Acho que Hillman nos alerta muito para isso. Uma das suas principais contribuições me parece ser esse entrelaçamento da alma com a morte. E é o mais difícil de se compreender, sua ênfase constante na morte, podermos compreender o que é isto. Acho que é o ponto nevrálgico e o ponto mais mal compreendido de Hillman.