Trecho da apresentação:
“Novos olhares” poderia ser uma boa metáfora para a prática da psicologia arquetípica. É o que temos aprendido e exercitado entre nós e nos nossos Encontros: olhar de novo, olhar o novo ou olhar de um jeito novo.
No escuro do meu laboratório, percebo, inicialmente, que o que dá corpo à psique é a sua própria sombra, ou, um reflexo enevoado de nós, nem sempre visível, mas paralelo. Há um hálito tangível que inscreve uma vontade de revelação. Há um desejo por imagens e formas, algo quer se encarnar, tornar-se corpo. Então, experimento que o que dá corpo à psique são as imagens da sua própria imaginação. A psique é um corpo de imagens.
Olhando de novo, e por outro lado, me parece que a psique quer corpo, precisa de carne: de linfas, fluídos, hormônios, umidades, saliva, sangue, sêmem, tudo que dê às vísceras possibilidades de deslizamentos ou trânsito livre para a imaginação. Precisa da umidade e da temperatura de um corpo alquímico para as suas transformações “solve e coagula”. A alma quer e precisa de um corpo eviscerado e se alimenta prazerosamente das imagens desse corpo, da fisiologia vegetativa presente nas profundidades das nossas conexões celulares.
A psique precisa da intimidade das carnes e dos líquidos pra fermentar imagens e tornar-se corpo. Precisa de se olhar, de se refletir, de ser vista, de metaforizar e dialogar com suas metáforas. E isto é diferente de um olhar psicossomático, preocupado em circunscrever patologias. Penso na natural vulnerabilidade da alma, que aflita, provoca e precisa de coagulações sanguíneas. Penso que sua densidade pede membranas e cavidades para secretar seus mistérios, e artérias e veias para circular seus desejos. E penso na melancolia como seu estado natural, que condensa dores, resseca secreções e sonhos, destila sensações de vazio e de falta e também saliva realizações. São expressões da psique querendo encarnar seus significados, fazer vida e fazer morte.
Damos corpo à psique ao oferecer-lhe, através do nosso encontro, além de um ritual de tempo e espaço para a sua expressão, possibilidades de interlocução, discriminação e troca entre imagens e falas. Oferecemos à psique uma ossatura mítica para as suas imagens.
(…) Então nossas “palpitações” psicológicas são na verdade os movimentos naturais de um ritmo cardíaco ativado pelo encontro terapêutico. São inspirações da alma usando um metabolismo de troca transferencial e que só se tornam possíveis quando há cavidades abdominais livres e cuidadas para esse ritual e quando não tememos adentrar nas suas intimidades imaginais.
Isabel Labriola
Trecho da discussão:
Gustavo Barcellos: (…) Você entrou na metáfora do tema com uma profundidade, com uma poesia, com uma precisão, com um olhar psicológico fascinante. Eu adorei ouvir o que você apresentou. Realmente me deu a sensação de ter entrado na metáfora do corpo, que na minha fantasia era o que se poderia fazer aqui. A minha proposta era realmente essa.
Ângela Nacacio: Isabel, gostei demais. Em determinados trechos era como se você conduzisse uma filmadora no corpo psíquico, como se entrasse na caverna e fosse conduzindo e mostrando os meandros. Achei fantástico.
Roberto Straub: Endoscopia arquetípica.
Gustavo Barcellos: O que você faz permite a gente pensar, permite a gente ver. Que eu acho que é boa esta idéia de utilizar as metáforas do corpo para iluminar a nossa experiência da alma. Sem ser uma psicossomática. É uma coisa em outro lugar. Era esse lugar que eu estava querendo propor que a gente achasse, ou procurasse. E você trouxe isto.
Rosa Blanco: Eu estava pensando… você falou, o Hermenegildo falou, tem uma coisa que permeou todo mundo, o dentro e o fora, quer dizer, esse eu e esse outro, é você falando do de fora que alimenta o de dentro, que alimenta o de fora. E pensando me veio a palavra contaminação. Epidemia. E lembro que Dioniso é o Deus mais epidêmico, e epidemia significa o aparecimento dos Deuses na terra, quando eles vêm à terra conviver com os homens. O quanto a psique é epidêmica, e eu me pergunto o que é esse dentro e esse fora. O que é esse meu ou esse dele? Tem uma frase que gosto muito, que fala que “o dentro é uma dobra do fora”.
Caio Kugelmas: É interessante, Gustavo. Nós não temos a mesma palavra que congregue as duas coisas. Ou é corpo ou é alma. Não existe uma palavra que reúna precisamente. Me vem sempre uma frase que eu devo ter dito no último Encontro, que é um ditado milenar indiano que diz: “corpo sem alma é apenas um cadáver”. Então, eu me pergunto se a alma não é a própria vida.
Rosa Blanco: Jung diz isso, diz que psique é vida.
Caio Kugelmas: Em todas as colocações de corpo, nós esquecemos um, o corpo que vai ser velado. O corpo que vai ser enterrado. E nós temos uma frase só para corpo, que é uma palavra para corpo sem vida. E não temos uma palavra para corpo com vida.
Gustavo Barcellos: É verdade. Em inglês tem, o corpse e o body.
Ângela Nacacio: Mas acho que a gente diz corpo almado.
Caio Kugelmas: Duas palavras.
Rosa Blanco: O almado é adjetivo do corpo, esse é o problema.
Caio Kugelmas: Vou pesquisar se no sânscrito existe uma palavra para isto. Mas também tem palavras compostas, tem uma palavra em sânscrito que é Jivatma, que é o espírito encarnado, mas são dois vocábulos que se justapõem: Jiva e Atma. Jiva é a forma limitada e finita dos seres e espíritos. Eu gostaria de colocar mais uma coisa só. Sempre nos referimos à alma como se fosse a alma humana. E sobre a fertilidade eu pensei, como ela pode acarretar tanta destrutividade? A fertilidade do corpo humano, que está gerando milhões de novos seres, literalmente, está ocasionando a destruição de outros milhões de seres, que têm corpo animado, portanto devem ter alguma forma de alma, não é verdade? E todo esse mundo faz parte de nosso complexo anímico. Um dia, falando com um amigo, eu disse, “o homem está devastando”, e ele retrucou “não, o homem está se devastando”.
Gisele Sarmento: Ela captou. A mesma coisa do fotógrafo. Ela fez um todo, essa impressão da qual falava. Ela conseguiu fotografar. Está todo mundo vendo, mas ela foi.
Isabel Labriola: Esta é uma atitude para a qual a gente fica solicitada no trabalho clínico. É uma atitude de ficar respeitoso ao fenômeno, aquilo que está acontecendo ali, se você dá espaço para essa empiria, ela se revela. Acho que o sandplay oferece a base para isso. O sandplay me ajuda muito a trabalhar com a imaginação, a trabalhar de um jeito que Jung me propôs desde sempre, e que Hillman então redescobre e salva. Porque já está ali, eu posso me perder no contexto analítico, nas conversas, mas na hora que eu coloco meu paciente e me coloco diante daquela caixa que tem limites claros e ao mesmo tempo fica protegida por esses limites, toda a empiria necessária para a revelação e a expressão da alma acontece. É uma coisa impressionante. Por exemplo, estou começando a colocar uma paciente no sandplay, nós estamos fazendo uma experiência sofrida de alma, porque ela é extremamente racional, é uma acadêmica, trabalha com semiótica, escreveu textos belíssimos, tem muitos livros publicados, mas ela trabalha com a estética da imagem em outro nível. Não vai lá no fundo, ela segura num lugar criativo. E é uma paciente muito interessante de se trabalhar, porque traz sonhos maravilhosos, tem textos, fala coisas maravilhosas, só que não entra com profundidade, ela somatiza. Está sempre somatizando. Aí, eu a coloquei na experiência do sandplay, onde já há uma resistência de todo intelectual: esta coisa sem palavras, disforme, infantil, essa coisa de joguinho.
Roberto Leal: Mas muda o paradigma.
Isabel Labriola: Ela chega naquilo inicialmente e fala, “ai que medo. Estou com medo. Ai que medo, estou com medo, nossa que medo, como é que eu vou mexer nisso”. Verdadeiramente, porque é verdadeiro o seu medo. Porque ela está quebrando uma resistência do jeito de ser que ela construiu e está desconstruindo. Quando ela, de repente, mete a mão na areia. “Ai, o que pode aparecer aqui… estou com medo… eu estou até tremendo, você acredita que eu estou suando”? Quer dizer eu fico ali com ela, o suor e o medo de, de repente, fazer uma revelação de ferida. De tocar em cicatrizes, de fazer um movimento da alma que talvez ela não suporte. É quase insuportável, mas ela vai, ela fala “ah, bom, está bom por hoje”. Aí no outro dia, “vamos lá mais um pouquinho”. Parece criança que você leva pela primeira vez no mar.
Caio Kugelmas: Isabel, é interessante que talvez essa mesma mulher não tenha nenhum receio de ir ao médico e dizer está doendo aqui, está doendo ali. Parece que não temos vergonha de falar do sofrimento do corpo, mas chegar e mostrar um sofrimento de alma… O que antecede esse medo, essa vergonha, essa não revelação? Nós trabalhamos assim.
Marla Anjos: Sinto que minha experiência com sandplay ajuda muito a revelar o ritmo da alma, o ritmo respiratório da alma, se é lento, se é ofegante…
Isabel Labriola: O corpo está presente. O corpo da alma. As vísceras. É bem isso.
Marla Anjos: Como a alma respira, se de forma asmática, se respira de forma ofegante, se respira de forma acelerada, taquipnêica. E como que ela pulsa, se ela pulsa em taquicardia, em bradicardia. Então, toda essa forma corpórea da alma, o sandplay oferece. Se ela também revela uma ejaculação rápida e direta e precoce e forte, ou se ela não ejacula, se ela retém a ejaculação. Então, o sandplay oferece esta possibilidade. De se acompanhar o ritmo respiratório, cardíaco, ejaculatório dos fluidos da alma.