Trecho da apresentação:
Nós homens adultos evolutivamente convictos de nossa condição de animais superiores, nos mantemos talvez ignorantes de que nossa mais íntima natureza seja metafórica e profundamente vegetal; que vegetamos mais do que imaginamos; que coisas vegetam em nós e que elas são mais ativas e vorazes do que suspeitamos. Somos, organicamente falando, neuro-vegetativamente condicionados; encontramo-nos formados por órgãos que vegetativamente nos sustentam e matam. E se o sistema orgânico vegetativo expressa mais vivamente nossa alma inconsciente, viver também é um vegetar imaginativo. A alma vegetal ou o caráter vegetal da alma, vegeta em nós com raízes vivas em nossas entranhas mais biológicas, nosso sistema nervoso autônomo, dito vegetativo. Um ego literalmente evolucionista e humanista talvez seja no fundo como uma indefesa criançinha em meio a uma imensa vegetação que o alimenta mas que também, animadamente faminta, ameaça devorá-lo como uma poderosa planta carnívora. Penso que através dessa fantástica imagem, o profundo caráter vegetal da alma esteja se apresentando enquanto realidade viva. A alma, essa coisa, quem sabe, infra ou sobre-natural, talvez seja assim imaginativamente percebida enquanto mistério em meio às coisas ditas naturais.
O caráter autônomo da alma, sua “vegetabilidade”, sua atividade espontânea, muitas vezes alheia ao senso humano, se dá em nossas entranhas e nas entranhas de tudo. É como a interioridade viva e invisível das coisas do mundo. A perigosa animação vegeta em nós, em nossas vísceras, assim como nas nervuras de uma planta. Comemos plantas, mas quem sabe as plantas nos comam mais ainda, por dentro e por fora, que o digam nossas corrosivas doenças vegetativas e também as compulsões que nos consomem, nossas perigosas atrações pelas ninfas vegetantes da vinha, do tabaco, do cânhamo, da coca e da papoula, por exemplo, psicológicas plantas carnívoras, encantadoras e devoradoras musas de nossos paraísos artificiais.
Hermenegildo Anjos
Trecho da discussão:
Elizabeth Volpi: Como a psicologia arquetípica dá conta dessa alma devoradora? Essa alma devoradora expressa de forma literalizada, quando estamos na loucura mesmo?
Hermenegildo Anjos: Talvez vivamos em eterna loucura. Ou seja, talvez cada fantasia que encenemos seja uma loucura, em última instância. Não há como fugir da natureza misteriosa da alma se manifestando no ser humano, por exemplo, sob a forma de compulsões. A compulsão como o devorar da alma. E a compulsão, como o próprio Jung disse, é o grande mistério. Não dá para ser equacionado. Não dá para ser resolvido. Então, como lidar com isso? Existe o estilo heróico, existem vários estilos para lidar com isso. Eu gosto muito do estilo hermético, do estilo mercurial.
César Fernandes: Parece que quando você traz a compulsão, a reflexão e o respeito para com tudo isso, levanta entre nós um receio, e já queremos colocar um metron nisso tudo, tentamos sair desse respeito a esses personagens todos, conviver com eles, e ter uma abordagem imaginal, pois logo vem a fantasia de precisarmos controlar tudo isso, precisamos educar. Tive essa impressão, que você levantou entre a gente esse…
Renata Wenth: …medo.
Ita Wilde: Ficou para mim uma palavra: “cruel”, uma coisa da crueldade, uma sensação muito assustadora da negociação com o desarmônico. Falar em compulsão, dentro de um referencial de arte, de estética, está-se falando de desarmonias… o momento onde vem o exagero. Isto é que é muito assustador. Dá um desespero.
Hermenegildo Anjos: Mas uma consciência hermética te protege. Os Deuses também têm suas faces amigáveis… Eles também gostam de nós.
Gustavo Barcellos: E colocar a questão da compulsão na imagem do devorar é mais imaginativo, é a via hermética, é mais amigável também. E é arquetípica.