Chocolate: Prazer e Pecado/Gosto Dobrado

By 31 de agosto de 2014novembro 11th, 2023Alma e Comida

Trecho da apresentação:

 

Tudo o que é mais delicado e engenhoso se deve ao desejo.
—Brillat-Savarin

Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
—Fernando Pessoa, “Tabacaria”

 

Que valor simbólico contém o chocolate e a que ritual sagrado nos remete? Ele nos põe adeptos e cativos do seu sabor, sua cremosa degustação e seu cheiro e/ou precavidos e abstêmios, por seu efeito calórico e viciante a invadir nosso controle; algo de paladar sofisticado, untado nas especiarias, mas que nos mantêm mundanos, lambuzados nas tiranias do prazer.
Há um valor sagrado agregado ao sabor, que faz do chocolate um alimento ou uma gostosura da interdição, algo como uma equação obscura que guarda perigos e segredos a serem saboreados com cuidado — o que acaba por promovê-lo à predileção: prazer e pecado = gosto dobrado.
… nosso estômago psíquico tem seguido ao sabor do chocolate e suas metáforas, que desencadeiam em nós uma imaginação saborosa, e ao mesmo tempo culposa, em geral relacionada a picardias do excesso. (…) Este cacao-theobroma parece ter ficado em nós como memória-sensação de algo picante, excitante, instintivo, pecaminoso e afrodisíaco – de Afrodite, algo negro, pagão e dionisíaco. Uma epifania trickster faz parte deste chocolate pagão-pecaminoso.
Sabemos que as equações culturais com valores ocultos, sublimados ou desacralizados, nos remetem a sensações psíquicas indigestas e complicadas, que desafiam nosso estômago psíquico na metabolização dos nossos prazeres e das nossas necessidades. Sem que nos demos conta, o chocolate nos remete sempre à equação excitante de prazer e pecado, açúcar e pimenta. Há uma alma aprisionada num gozo dobrado: a sobreposição de um deus, ao mesmo tempo pagão e cristão. Engolimos uma tradição pagã (dos aztecas e maias) e tentamos digerí-la com as doces bênçãos dos rituais cristãos. Assim como num canibalismo antropofágico engolimos o corpo de Cristo na comunhão cristã e, sobreposto ao antigo rito pagão de celebração da fertilidade, comemos um ovo de chocolate na Páscoa da ressurreição.

…podemos dizer que ele é a permanência entre nós da fruta iniciática que veio se transformando nas culturas: romã do Hades, maçã do Paraíso, cacao-theobroma dos aztecas e, por fim, tablete ou bombom de chocolate — o fruto arquetípico consumido por nós em sua embalagem moderna.
Nosso delicioso chocolate moderno é produto de um amalgama cultural grego, egípcio, judaico e cristão. Dessa forma, ele parece ser mais uma das formas condensadas latinas de Mercúrio, dono das ciências secretas e das formulas mágicas, capaz da rubedo alquímica nas conexões entre mundos, entre luz e trevas; e que associado a Dioniso, que na mítica pode ser a própria Serpente Emplumada, vem mantendo ativa uma imaginação sensual, que provoca agitações, excitações, rubor, prazer, vigor e transformação.

Então, para as suas delícias, sem culpa, é necessário manter-se na simetria e na arte-manha ritual desse Hermes\Mercúrio, que sabe realizar conexões que dão dignidade a lados considerados não dignificados da nossa psique, simplesmente realizando o desejo de comer. O comer ou saborear chocolates, usufruindo a perspectiva ritual sagrada pela comida dos deuses deverá nos levar ao desfrute consentido de gostosuras e travessuras. Uma malícia sagrada que se compromete, e não se constrange, com os apetites da alma e suas digestões do momento, e assim não nos deixa aprisionados nos dramas da penitência e da culpa e nem nas estripulias infantis e uterinas dos prazeres.

Isabel Labriola

Trecho da discussão:

Gustavo Barcellos: Isto é interessante de pensar do ponto de vista anímico, da alma do fruto. Ele tem uma coisa sombria, no sentido de Hades, e até no sentido de Hermes. Uma das coisas que achei mais interessante na sua fala, Isabel, foi realmente fazer uma conexão entre o chocolate e Hermes, mas um Hermes latino. Uma manifestação do Hermes na América.

Alice Becker: O chocolate como uma fruta afrodisíaca para mim parece ter uma energia muito masculina, diferente da romã, que tem uma energia muito feminina, até na própria aparência. Ela se parte e mostra uma vulva vermelha dentro, a semente que planta e que cria vida. E o chocolate também, o cacau, é longilíneo, mais fálico, essa polpa que envolve o caroço tem uma coisa parecendo o esperma, é branquinha.

Gustavo Barcellos: Espermático, talvez ele tenha uma alma mais masculina mesmo.

Elias Korn: Mas tem gente que quando vai comer, e às vezes eu também faço isso, oferece uma oração. Não precisa nem ser uma oração, mas faz uma reverência, ou oferece o gosto. É interessante pensarmos nesta perspectiva, que é essa cultura que tem essa relação com o alimento, que está entrando em contato com a alma do alimento.

Gustavo Barcellos: Então, vejam que é um fruto com uma alma politeísta mesmo. Porque há toda essa relação com Hermes que você trouxe, mas Afrodite também está aí, Vênus.

Ana Suely Vieira: Na região em que nasci, região cacaueira, o cacau era o eros do lugar. Tinha uma força erótica, um movimento ligado ao cacau. Com essa questão da praga, mudou totalmente a cara da região.

Gustavo Barcellos: Eu já vi na Europa casas de chocolate eróticas com chocolates não só em forma de pênis, mas de vulva. Brincadeiras com estas formas.