Para dar água na boca, para encher os olhos e, claro, abrir o apetite! Na tradição da psicologia arquetípica, alma e comida já se encontram entrelaçadas em níveis muito profundos: fazer comida é um modo de cultivar a alma; cultivar a alma é cozinhar o cru de nossas experiências de vida.
Foi o humor, lembremos, que introduziu a aproximação de alma e comida na psicologia arquetípica, com a publicação do Livro de Cozinha do Dr. Freud, séria brincadeira escrita por James Hillman e Charles Boer em 1985. Ali, a primazia da oralidade sobre a genitalidade, que reverte a lógica freudiana, está refletida nos discursos que enaltecem tudo aquilo que vem antes, tudo que é anterior: numa hierarquia ontogenética dos apetites, primeiro a fome, depois o sexo; ou seja, primeiro a mesa, depois a cama.
O campo metafórico entre comida e alma é, de fato, imenso: apetite e inanição, que traduzem atração e repulsa. Esse campo permite-nos, principalmente, desliteralizar as tão carregadas questões da psicossomática, dos distúrbios da alimentação, das patologias do peso e da gravidade, da ingestão e da digestão, da gordura e da leveza, do prazer e da culpa, e até mesmo da gula: gula aqui não como um pecado capital, mas como um estado da alma capitulada. E o que é mesmo a gula, podemos perguntar, agora num plano anímico, não espiritual?
Como então as metáforas da alimentação, da nutrição e da comida podem nos ajudar a vislumbrar a alma e guiar nossos processos de cultivo da alma? Sonhos doces, verdades amargas, realidades salgadas, relações apimentadas, situações picantes. O repasto, o menu. Caminhamos, talvez mais aqui do que com outros temas, numa tênue linha entre a metáfora significativa e libertadora e a concretude literal e aprisionante.
Gustavo Barcellos